Ano após ano, as grandes universidades divulgam os livros sobre os quais serão feitas as questões de literatura dos vestibulares. As perguntas correspondentes aos livros indicados são em regra perfeitamente possíveis de serem elucidadas se o aluno conhecer as questões fundamentais levantadas pela obra, mais até do que o enredo ou o nome de personagens secundários, por exemplo. E, uma vez que o ensino de literatura parte das obras literárias, e não apenas da fria e distante historiografia, não seria o vestibular a deixar de exigir do aluno a leitura e interpretação de um livro, não é?
Pois é… mas há nisso uma questão importante que se põe: Como são escolhidas as obras que caem no vestibular?
Na verdade, não é apenas um fator que interfere na escolha. São vários, relacionados à literatura, mas não apenas a ela. Algumas indicações, como a do disco Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MCs, para o Vestibular 2019/2020 da Unicamp, levantaram alguma polêmica nas redes. Não é preciso ser da área para constatar que a grita contra o disco não passa de pura ignorância e preconceito. Tal processo tende a se tornar inevitável se considerarmos as novas frentes que o ensino de literatura tem aberto. A literatura é o domínio artístico da palavra, ou seja: uma máquina de abrir mentes com a linguagem. E os vestibulares, claro, são permeáveis a tais tendências. A abertura aos mais diversos gêneros textuais (música apresentada como uma manifestação poética, por exemplo) deverá ser uma tendência dos próximos anos, sobretudo da Unicamp.
Dito isso, levantamos aqui alguns aspectos que costumam ser relevantes para que a comissão de elaboração da prova escolha este e não aquele livro. Vejamos alguns desses critérios:
– objeto de estudo dos responsáveis: já reparou que há alguns autores que não saem da lista de obras? Isso pode acontecer pelo fato de que estudar aquele autor ou movimento é uma tradição daquela Universidade. Mais especificamente, pode também acontecer que tal autor esteja na lista porque o docente responsável pela elaboração da questão é especialista no tema;
– algum autor relevante sobre o qual não haja muita fortuna crítica: há também a possibilidade de que os estudiosos queiram eleger algum autor que eles julgam não ter o destaque que deveria. É como retirar do baú uma obra pouco lida, fomentando posteriormente o debate em torno dela;
– tendências observadas dentro da sociedade: a literatura está atenta ao mundo, aos seus fluxos de pensamento. Se há na sociedade movimentos de exclusão/inclusão, técnica, dilemas éticos, desigualdade, diversidade e conflitos identitários, fatalmente o assunto estará em pauta no vestibular, e não apenas na parte que lida com a literatura. Não adianta tapar o sol com a peneira e fingir que vamos sempre debater amores românticos quando a realidade atual é pautada pela pluralidade e suas ficções/fricções;
– estudos pioneiros em literatura: sendo a literatura o espaço democrático por excelência da arte da escrita, não haveria razão para que ela deixasse de tentar compreender, também dentro do vestibular, a totalidade de matizes culturais e sociais possíveis: do idílio pacífico de Iracema ao conflito étnico do Mayombe;
– consolidação do cânone ou fixação da historiografia literária: em literatura, a palavra cânone se refere àquele tipo de obra intocável, histórica, necessária, básica. Não se pode esquecer que o “compromisso” do vestibular é também com o processo educativo, e portanto deve exigir a leitura de autores considerados “clássicos”, pela importância que eles têm na nossa cultura. É por isso que aquele tal de Camões ou aquele tal Machado de Assis dificilmente saem das listas de vestibulares. É por isso que você até hoje não se esqueceu daquele verso: “amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente”…
Bem, a questão ainda não está resolvida totalmente… Talvez alguns estejam perguntando por que Harry Potter e a saga Crepúsculo não estão nessas listas. Sem enveredar pela questão da suposta qualidade literária dessas obras (que já é um outro debate), vamos responder a essa pergunta com a constatação de que certos aspectos, como interesse editorial, apelo popular, exposição na mídia ou número de exemplares vendidos não são critérios de seleção de obras do vestibular. Pode ser que um dia esse estatuto marginal dessas obras em relação à literatura seja questionado, que se admita a cultura do best-seller como relevante do ponto de vista artístico, mas até hoje isso não ocorreu. Provavelmente porque cabe à escola explorar aquilo a que o aluno não tem ou não teria acesso se não fosse por ela. Isso reverbera na formação que a escola pretende dar a seus vestibulandos, e por consequência na cultura geral mínima que a Universidade deseja de seus ingressantes.
Bem, haveria muito mais a falarmos sobre o tema. Mas vamos fechar por aqui, deixando para vocês a lista de livros dos vestibulares 2018 (ingresso em 2019) da FUVEST e da Unicamp. Aos estudos!
Fuvest
Iracema ‐ José de Alencar
Memórias Póstumas de Brás Cubas ‐ Machado de Assis
A Relíquia ‐ Eça de Queirós
O Cortiço ‐ Aluísio Azevedo
Vidas Secas ‐ Graciliano Ramos
Minha Vida de Menina ‐ Helena Morley
Claro Enigma ‐ Carlos Drummond de Andrade
Sagarana ‐ João Guimarães Rosa
Mayombe ‐ Pepetela
Unicamp
Poesia:
Luís de Camões, Sonetos
Jorge de Lima, Poemas Negros (Livro distribuído pelo governo federal no PNBE).
Ana Cristina Cesar, A teus pés.
Contos:
Clarice Lispector, “Amor”, do livro Laços de Família.
Guimarães Rosa, “A hora e a vez de Augusto Matraga”, do livro Sagarana.
Machado de Assis, “O espelho”
Teatro:
Dias Gomes, O bem amado
Romance:
Camilo Castelo Branco, Coração, cabeça e estômago (Livro em domínio público).
Érico Veríssimo, Caminhos Cruzados (Livro distribuído pelo governo federal no PNBE).
José Saramago, História do Cerco de Lisboa.
Diário:
Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo (Livro distribuído pelo governo federal no PNBE).
Sermões:
Antonio Vieira:
(1) Sermão de Quarta-feira de Cinza – Ano de 1672;
(2) Sermão de Quarta-feira de Cinza – Ano de 1673, aos 15 de fevereiro, dia da trasladação do mesmo Santo;
(3) Sermão de Quarta-feira de Cinza – Para a Capela Real, que se não pregou por enfermidade do autor.
Fernando M. Serafim
Professor de Língua Portuguesa e Literatura
Soma Orientação e Educação Multidisciplinar – Barão Geraldo