Mário de Andrade talvez tenha sido o primeiro crítico que soube compreender a essência da poesia de Carlos Drummond de Andrade, ou, melhor dizendo, o processo de composição do poeta de Itabira.
Escritor e amigo, Mário manteve com ele uma correspondência que durou por toda a vida e também é parte fundamental das lições e da aprendizagem de poeta do jovem Drummond. Entretanto, jamais se pode pensar que a influência exercida por Mário foi redutora da personalidade e da força criadora do poeta mineiro, muito pelo contrário. Na leitura da poesia de Drummond, às vezes fica a impressão de que, em certos momentos, este foi capaz de realizar versos que Mário de Andrade apenas pensou e não chegou a escrever. Evidentemente, a relação entre os dois poetas, no âmbito da literatura, era de influência recíproca, na qual se discutia ideias e experimentos de versificação.
Seja como for, a perspicácia no entendimento do processo de composição da poesia de Drummond talvez se deva, ao menos em parte, pelo conhecimento do indivíduo (mencionado inclusive por Mário), que se revela nas cartas que foram publicadas sob o título de A Lição do Amigo, organizadas cuidadosamente por Carlos Drummond de Andrade.[1]
No ensaio “A poesia em 1930” (1931), Mário de Andrade se dedica à análise de três poetas: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Murilo Mendes. Nas considerações sobre o poeta mineiro, diz Mário:
A análise de Alguma Poesia dá bem a medida psicológica do poeta. Desejaria não conhecer intimamente o poeta Carlos Drummond de Andrade pra achar melhor pelo livro o tímido que ele é. Pra ele se acomodar, carecia que não tivesse nem a sensibilidade nem a inteligência que possui. Então dava um desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem saber o que são, cuja mediocridade absoluta acaba fazendo-os felizes! Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo, é ao mesmo tempo inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas que se contrariam com ferocidade. E desse combate toda a poesia ele é feita. Poesia sem água corrente, sem desfiar e concatenar de ideias e estados de sensibilidade, apesar de toda construída sob a gestão da inteligência. Poesia feita de explosões sucessivas. Dentro de cada poema as estrofes, às vezes os versos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inteligência, as quedas de timidez se interseccionam aos pinchos.[2]
Nas palavras do crítico, pode-se dizer que estão condensadas, de certo modo, o processo de composição de Carlos Drummond de Andrade. Tais considerações, é claro, não devem ser tomadas ao pé da letra, como se toda a produção poética de Drummond obedecesse a elas como receita literária. A qualquer um que tenha lido mais de uma obra do universo poético drummondiano, nada pareceria mais equívoco, pois a cada publicação o poeta renova a si mesmo e a sua poesia, em constante busca na qual se perfaz o ideal artístico, nunca alcançado.
“A flor e a náusea”, poema publicado em A rosa do povo (1945), dá mostras da pertinência das observações tecidas por Mário de Andrade em 1931:
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.[3]
A crítica do autor de Macunaíma (1928) foi, sem dúvida, um verdadeiro achado.
Os críticos que se detiveram na leitura da obra poética de Drummond, mesmo decorridos longos anos após a publicação do ensaio de Mário, em 1931, jamais tornaram obsoletas suas linhas, nada disso. Em verdade, sucedeu o oposto: partindo do “achado drummondiano”, dilataram-se os horizontes da interpretação, sem que jamais nenhum crítico colocasse em questão a validade da análise do livro de estreia de Carlos Drummond de Andrade.
Bruno Ricardo da Silva
Referências bibliográficas
[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1982.
[2] ANDRADE, Mário de. A poesia em 1930. In: Aspectos da Literatura Brasileira. 5 ed. São Paulo: Livraria Martins, 1974 [p. 33].
[3] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992 [p. 97-98].