Tornou-se comum, há algum tempo, afirmar que os vestibulares mais concorridos do país, como os da Unicamp e da USP, abordam quase sempre conteúdos de teor semelhante, os chamados ‘temas clássicos’. No caso das provas de história, assuntos como o Brasil Colonial, a Revolução Francesa, a Segunda Guerra Mundial e a Ditadura Militar brasileira seriam parte componente desses temas clássicos, sendo quase impossível que um ou outro não fossem cobrados nos exames vestibulares, ano após ano.
Embora, do ponto de vista estatístico, determinados assuntos, de fato, tenham um grau de incidência maior nos vestibulares, é nítido como nos últimos anos os exames têm tentado fugir aos temas consagrados, quer seja perguntando sobre recortes temporais pouco estudados no Ensino Médio, quer seja trazendo às provas autores e discussões que, normalmente, apenas são debatidos em nível superior. Todavia, ainda que tal opção possa parecer assustadora aos vestibulandos, veremos – a partir do exame de uma questão da segunda fase do vestibular de Unicamp de 2018 – como a banca de corretores coloca a capacidade de interpretação, de textos e imagens, como a principal habilidade requerida dos candidatos. Vamos à questão:
Prova de História, questão número 3. (Disponível em: https://www.comvest.unicamp.br/vest2018/F2/provas/matgeohis.pdf. Acesso em 05/02/2018).
O orientalismo é um estilo de pensamento baseado em uma distinção entre Oriente e Ocidente. Quando o orientalista culto viajava para o país de sua especialização, ia sempre acompanhado de máximas inabaláveis sobre a “civilização” que estudara; eram raros os orientalistas que tinham outro interesse que não o de provar poeirentas “verdades”, aplicando-as aos nativos que não os entendiam e, portanto, eram degenerados. O Oriente precisava primeiro ser conhecido, depois invadido e possuído, e então recriado por estudiosos.
(Adaptado de Edward Said, Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990).
Considerando o texto e o quadro acima reproduzido e seus conhecimentos, responda às questões:
A)Segundo Edward Said, o que era o orientalismo?
B) Identifique um elemento do Orientalismo no quadro do pintor italiano Giulio Rosati
(1858-1917) e explique esse elemento.
A questão é interessante por, a um só tempo, ser inventiva e clássica. Inventiva porque pede aos vestibulandos reflexões a respeito do intelectual palestino Edward Said (1935 – 2003), autor fundamental para o pensamento pós-colonialista devido à repercussão de seu trabalho Orientalismo, publicado originalmente em 1976. A despeito de sua capilaridade no meio acadêmico, Said e suas teorias costumam ser postas em pauta apenas no ensino superior, sendo, portanto, pouco discutidas no Ensino Médio ou cursinhos pré-vestibular, donde a criatividade da pergunta. Entretanto, ainda que a questão seja bastante engenhosa em seu conteúdo, a forma de cobrá-lo é típica dos vestibulares da Unicamp – interpretação atenta do enunciando e sua aplicação, neste caso, na análise de um quadro.
Desta forma, o item A pede ao candidato que conceitue a ideia de ‘orientalismo’ tal como concebida por Said, a partir da leitura do excerto citado no enunciado. De acordo como a própria banca de correção (cujos pareceres estão disponíveis em: https://www.comvest.unicamp.br/vest2018/F2/provas/hisresp.pdf – Acesso: 06/02/2018), dois aspectos deveriam ser citados na resposta; o dado de que o orientalismo é um discurso criado pelos intelectuais do Ocidente sobre o Oriente e que este discurso não é neutro. Pelo contrário, todas as descrições do Oriente feitas pelos intelectuais ocidentais configuram-se em relações de poder, que visam a taxar o Oriente como apático, violento, sedutor e demais epítetos de teor semântico semelhante, configurando-se, portanto, em uma prática eurocêntrica típica do imperialismo europeu vigente aos séculos XIX e XX. O item A, pois, tem a capacidade de leitura e reflexão sobre o conceito apresentado no enunciado como principal característica.
Por seu turno, o item B pede que o estudante aplique as reflexões elaboradas durante a feitura da questão na análise de um quadro produzido exatamente no contexto de imperialismo europeu a partir do qual Said elaborou o conceito de orientalismo. A questão pede que o candidato identifique e caracterize um elemento orientalista no quadro Dança no Harém, do pintor italiano Giulio Rosati, utilizando a pintura como fonte histórica. De acordo com a banca, aspectos como o próprio espaço do harém e os seios expostos da protagonista do quadro evocam a sensualidade e lassidão típicas do discurso orientalista, que enxerga um Oriente em todo sedutor, pronto a corromper o ocidental. Além disso, é possível citar a apatia das demais dançarinas no quadro, que, atiradas ao chão, parecem caracterizar a preguiça e a apatia, também criadas pela prática orientalista.
Partindo a análise desta questão, é patente como os elaboradores da prova tentam inserir no exame vestibular um tema pouco estudado no Ensino Médio. Entretanto, a banca corretora valoriza, acima de tudo, a capacidade de o candidato aprender com a questão, analisar e compreender um conceito novo e, em seguida, aplicá-lo na resolução de um problema concreto – a expressão do orientalismo em um quadro. Esta questão, portanto, é um excelente exemplo de como os exames vestibulares podem ser tanto inovadores no conteúdo, ao citarem um autor erudito, quanto tradicionais, ao enfatizarem as habilidades de leitura, interpretação de texto e apreensão de novos conceitos.
Thiago do Amaral Biazotto
Professor de História no SOMA.